segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A revogação da Anistia – Jayme Copstein

No debate em torno do que fazer com a história dos anos de chumbo, vale o fato de que criança, depois de fabricada, não tem como ser devolvida. A história também não pode ser revogada. Ela é uma lição com advertências para que os erros do passado não se repitam.

No Brasil, porém, o que se está discutindo não é o que fazer com a história, se deve – e deveria – ou não ser contada agora, mas a revisão parcial da Lei da Anistia, o instrumento que a sociedade brasileira encontrou, nos idos de 1980, para resolver seus impasses políticos e reingressar na normalidade democrática.

O jurista Sepúlveda Pertence, em 1979, argumentou que anistiar significa "esquecer o passado e viver o presente, com vistas ao futuro". O verbo adequado seria relevar o passado, para que se possa pensar o futuro. Não se pode perder de vista o truísmo atribuído a Brecht, de que o esquecimento do passado é condenação a revivê-lo amanhã. A Lei da Anistia não nem tem nenhuma permissão em seu texto para sepultar o relato dos crimes que foram praticados por todas as partes envolvidas.

Contudo, este é o seu limite. A ditadura militar, em 1979, já sob a presidência de João Batista Figueiredo, quis excluir da anistia o que alguns chamava "crimes de sangue". A sugestão tinha a mesma perversão ideológica de quem hoje sacraliza os assassinatos cometidos por Cesare Battisti, só que partia do lado contrário. Não há diferença, a não ser a torpeza do motivo, na verdade puro sadismo, entre o carrasco ainda não identificado que fraturou o pescoço do jornalista Vladimir Herzog e Carlos Lamarca que esmigalhou a coronhadas o crânio do tenente PM Alberto Mendes Junior. Crimes foram e continuam sendo, apenas sua punibilidade ter sido extinta pela Lei da Anistia.

Contra esta perversão ideológica, desde o início os movimentos de retorno à democracia falaram em "anistia ampla, geral e irrestrita". Em 1979, o Movimento dos Artistas pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita dizia com coragem: "(...) justamente quando o Presidente "jura" fazer de nosso país uma democracia, é concebida uma anistia repleta de parágrafos, de itens que restringem e, portanto, reprimem novamente. Não podemos admitir, sobretudo, que quando se pretende uma conciliação Nacional sejam anistiados uns e marginalizados outros".

O Instituto dos Advogados e o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil na ocasião também reagiram à anistia capenga que o regime pretendia impor à Nação. Foi nesta ocasião que Sepúlveda Pertence, escreveu: "A Anistia, representando reconciliação da nação consigo mesma, deve ser ampla, deve ser geral e deve ser irrestrita. (...) Não deve ter limites, já que as características do ato político, se variaram de caso a caso tiveram um mesmo fator motivante. Sendo ato de conciliação da nação consigo mesma, não deve ser feita nenhuma forma de gradação ou consideração da natureza do ato político. Significa esquecer o passado e viver o presente, com vistas ao futuro".

Não tem, pois, muito sentido, falar-se em revogação da Lei da Anistia, menos ainda em revogação parcial, para punir apenas uma das partes. E não faz nenhum sentido quando se tem presente que, mesmo sem a Lei da Anistia, todos cometidos até 1980, já estão prescritos.

Só faz sentido uma hipótese. Que a manobra esconda, como alguém que recua, caminhando sobre seus próprios passos, desmoralizar as forças armadas para imobilizá-las moralmente diante de um golpe que falhou lá atrás e foi por elas impedido.