quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O espírito da coisa - Jayme Copstein

Não sei quando a burocracia nasceu no Brasil. A mania de culpar os portugueses por tudo – mesmo 187 anos depois que foram embora – diz que a prebenda se originou na necessidade de Lisboa criar empregos para seus apaniguados.

Seja lá como for, permitam-me uma gargalhada diante da notícia, dando conta que o Ministério do Planejamento preparou pacote jurídico para abolir a exigência do reconhecimento de firmas e de documentos emitidos por órgãos públicos.

Por que rir quando devia aplaudir? É a terceira vez que leio esta mesma notícia nos últimos 40 anos, e ela sempre vem com o mesmo penachinho: a não ser nos casos previstos em lei. Como legislação no Brasil é um cipoal de repetições e contradições – há dúzias de leis dizendo a mesma coisa e outras tantas dúzias de leis dizendo o contrário, quem consegue saber das exigências ou da sua falta?

A memória me remete para uma conversa com o economista João Paulo Reis Velloso, no bar da Associação Riograndense de Imprensa em 1969, quando ele era secretário do Ministério do Planejamento. O titular, Hélio Beltrão havia baixado legislação para desburocratizar a administração pública, e Reis Velloso surpreendeu dois funcionários do próprio Ministério, trabalhando em sala de um dos andares superiores, sentados em mesas uma defronte da outra, cumprindo um ritual absurdo: um requerimento subia do Protocolo todos aqueles andares para o primeiro funcionário, que despachava: “À Seção Tal para autorizar seja processado.”

O requerimento era então devolvido ao Protocolo. Descia todos aqueles andares e subia de novo à mesma sala porque a Seção Tal era exatamente a mesa do segundo funcionário, cuja única atribuição era escrever: “De acordo. Autorizo seja processado”. E devolvia ao Protocolo para seguir a via crúcis. Como Beltrão estivesse viajando, Reis Velloso assumira o Ministério e determinou que o primeiro funcionário passasse logo o processo ao colega, o recebesse de volta no mesmo instante e remetesse logo ao Protocolo.

Os dois burocratas alegaram quer não podiam fazer isso. Perguntados por que, atrapalharam-se na resposta e finalmente disseram: “A gente sempre fez assim!”. Pois, de agora em diante, vão fazer diferente, – lhes ordenou Reis Velloso, que em seguida foi para seu gabinete.

Não se passaram três horas, e os dois burocratas lhe apresentaram um decreto do tempo do Império, esmiuçando o ritual. Particularidade: naquele tempo, as duas seções ficavam em prédios diferentes, no Rio de Janeiro. Com a mudança para Brasília, ocuparam a mesma sala, mas o decreto imperial não foi revogado. Portanto, cumpra-se a lei.

É esse o espírito da coisa.

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