Falsas antiguidades são boa isca para fisgar otários endinheirados. O Sul de ontem noticia a compra, por um bilionário russo, do Mercedes 770K que teria pertencido a Adolf Hitler. A própria Daimler, desmentiu a versão do vendedor, Michael Frölich, negociante de carros usados, que alegava ter garantia da fábrica, quanto à autenticidade da peça.
Quem leu sobre Hitler deduz que ele jamais possuiu qualquer automóvel. Não tinha vida fora do delírio ideológico, não praticava nenhum esporte, não cultivava nenhum passatempo. Antes de se tornar ditador, não tinha dinheiro para nada. Depois, dispunha de carros, aviões e até navios, como qualquer governante.
Hitler era pobre quando se alistou no exército, para lutar na Primeira Guerra Mundial. Ferido em combate e condecorado por bravura , permaneceu nas fileiras depois de 1918, engajado no serviço de informações. Tinha por missão espionar grupos políticos oara detectar e abortar subversões.
Foi assim que conheceu e apaixonou-se pelo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Ao nele ingressar, tornou-se militante profissional, sustentado pelos correligionários e também pelos direitos autorais de "Minha Luta (Mein Kampf)", que o fizeram milionário ao assumiu o poder porque a compra do livro passou a ser obrigatória , graças aos "argumentos convincentes" da Gestapo.
Chama a atenção na notícia a versão do vendedor, alegando ter encontrado o carro, após "procurar em toda a parte como um louco", em uma garage a apenas uma hora de distância de Düsseldorf, a cidade onde vive e tem o negócio. A "cascata" faz lembrar episódio semelhante, em Porto Alegre, de alguém tentando vender ao Governo do Estado um automóvel que supostamente pertencera a Getúlio Vargas. Contei o episódio em "Opera dos Vivos" livro de reminiscências dos jornais por onde passei.
Eu era repórter do Diário de Notícias e fui apurar a história. O vendedor se dizia oficial reformado da Brigada Militar e alegava estar se desfazendo do "tesouro" para salvar a única filha, da tuberculose, angariando recursos para tratá-la em sanatório de Minas Gerais". O carro, fabricado em 1947, era uma limusine, das que se alugam a 30 dólares por hora em Nova York, com geladeira e mesa para o lanche. O suposto oficial reformado não explicava como viera parar em suas mãos. Sempre que se insistia na pergunta, contava que fora presente da ONU a Getúlio e repetia, de cara compungida, a história da filha tuberculosa, acrescentando críticas ardentes à falta de memória do brasileiro e apelos para "preservar relíquia histórica de inestimável valor".
A história não fechava em nenhum ponto. A ONU jamais deu presentes a alguém. Se o fizesse, não seria ao sr Getúlio Vargas em 1947, porque ele estava no ostracismo, fora do governo do qual fora deposto dois anos antes. Só voltaria em 1951. Àquela altura, 1966, já ninguém ia às serras de Minas Gerais ou de São Paulo para curar tuberculose. Os sanatórios tinham fechado ou mudado de especialidade e o tratamento fora reduzido a antibióticos.
Um telefonema a Alzira Vargas liquidou o assunto e revelou a curiosidade: Getúlio jamais tivera um automóvel de sua propriedade. Dona Alzira explicou que "papai não se entusiasmava por essas coisas". Um integrante da guarda pessoal, que àquela altura vivia em Porto Alegre e fazia segurança nos Associados do Rio Grande do Sul, tinha outra versão: "Getúlio era 'mão de vaca' (palavras textuais). Não gostava de gastar dinheiro".