Discute-se agora na Inglaterra se a burka e outras peças do vestuário feminino árabe devam ser proibidas. Há um ministro de Estado dizendo que a restrição contraria a tradição democrática do país, mas as pesquisas de opinião revelam que 65% dos cidadãos apoiam a proibição por temerem que terroristas islâmicos possam usá-las como disfarce.
A quem tenho colocado a questão não me dá contribuição válida ao debate. Uns são incondicionalmente favoráveis à "cultura deles", outros, incondicionalmente contrários a ela. Aos que sobram, é questão muito distante. A maioria maciça da nossa população de origem árabe é cristã maronita ou católico-romana e o número de islâmicos não é chamar a atenção.
É extraordinário, porém, que um país como a Inglaterra, já tendo sofrido na carne as agressões do terrorismo, ponha no debate, em igualdade de condições, a liberdade de expressão religiosa e a segurança da população. É parte de uma fascinante tradição democrática que tive ocasião de testemunhar e de com ela me deslumbrar quando estive em Londres pela primeira vez, em 1974.
Com exceção de período 1945-1964, em que houve relativa liberdade no Brasil – oposição consentida até certo ponto, repressão a adversários e conspirações para depor o governo – eu vivera sempre sob ditaduras, a do Estado Novo de Getúlio, até 1945, e a dos militares, começada em 1964 e então sem fim à vista.
A maior experiência prática, em termos de democracia, eu a vivera um mês antes, nos Estados Unidos, ao me deparar, em uma esquina da Broadway, com um sujeito instalado em uma mesa, junto a um poste onde colara um cartaz em que pedia, com letras garrafais, assinaturas para requerer do Congresso o impeachment do presidente Richard Nixon.
Temeroso, disse ao meu guia: "Vamos sair daqui antes que a Polícia chegue para encher todo o mundo de porradas!" Ele caiu na gargalhada e me olhava e não conseguia parar de rir. Alguns meses depois, Nixon renunciou para evitar o impeachment.
Quando cheguei em Londres, um mês depois, fui assistir em Hyde Park aos comícios dominicais. O Park é o espaço reservado a qualquer cidadão, britânico ou não, que deseje expor suas ideias, sejam elas quais forem. Mas como é proibido falar mal da Rainha com pés no solo da Inglaterra, a Municipalidade providenciou pequenos pedestais nos quais os oradores sobem para dizer o que bem entenderem, até mesmo em relação a Sua Majestade, sem infringir a lei.
Naquele domingo, havia um comício de gays e afora os militantes e simpatizantes – não eram muitos – havia mais quatro pessoas, entre elas uma dupla de bebuns que lembrava muito Mutt & Jeff das histórias em quadrinhos: um deles era baixinho, caladão, o outro alto e palrador, que a todo momento contestava as teses do orador. O meu inglês mendigo não me permitia entender tudo o que diziam, a não ser quando o bebum perguntou: "Como é que pode, homem com homem, mulher com mulher?"
De novo, não consegui entender a resposta, mas pude intuir qual teria sido porque ele puxou o bebum baixinho para junto de si – mais lhe deu uma gravata do que um abraço – e berrou: "Arranjei uma namorada!"
Neste momento, a Polícia interveio. Foram advertidos de que estavam impedindo a livre manifestação do pensamento. Ou guardavam os limites ou iam embora. A dupla escolheu a segunda hipótese e lá se foi, cambaleando, um apoiado no outro, na direção do horizonte, protagonizando uma cena chapliniana.
Foi o meu be-a-bá da democracia.
Não tenho dúvida que o uso da burka, além das fronteiras dos países árabes, deixará o Ocidente vulnerável à ação dos terroristas de plantão.
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