terça-feira, 27 de julho de 2010

Que mal tem? – Jayme Copstein

Já arrefece o impacto da morte, no Rio de Janeiro, do adolescente Rafael Mascarenhas, filho da atriz Cissa Guimarães. Vai cedendo a outros personagens o lugar que ocupou momentaneamente na tragédia brasileira, cuja extensão pode ser medida pelo número de vítimas em ocorrências de trânsito.

Os números são aterradores. Nos dias seguintes ao do episódio os jornais publicaram estatísticas, relatando um acidente de trânsito a cada dois minutos, só computados os ocorridos nas rodovias. No total, 42 mil pessoas morrem por ano (uma a cada 15 minutos) no tráfego das estradas e das ruas do Brasil, porque em mais de 99% dos casos alguém comete imprudências. Ou seja, pequenas transgressões, "que mal não têm porque prejudicam ninguém".

Quando as autoridades sofrem acessos de moralização (sempre fugazes) e fingem agir com rigor, o país é unânime contra a "indústria das multas". Um estacionou "só cinco minutinhos" em fila dupla, outro passou "ligeirinho" o sinal vermelho, não tinha ninguém no cruzamento, um terceiro até dirige melhor quando entorna umas que outras, todos botam o pé na tábua quando não tem pardal à vista. Nada além de pequenas transgressões que mal não têm porque não prejudicam ninguém.

No Rio de Janeiro, funcionários municipais interditam alternadamente, da uma às cinco da manhã, uma e outra das entradas do Túnel Acústico, nas terças e quintas-feiras, para reparos e conservação. Se as obras vão ou não se realizar, não lhes diz respeito. É com outro departamento. Interditam e vão embora.

Naquele dia, não havendo manutenção no Túnel Acústico, à uma da madrugada três adolescentes decidem aproveitar o declive da pista para praticar skate. A hora e o local são inadequados para a prática de qualquer esporte, havia a interdição, mas como fazer em outra hora e em outro lugar, se só naquele lugar, com aquele declive, não passavam carros porque estava interditado e sem policiamento? Que mal tem se não prejudica ninguém?

Por sua vez, os PMs escalados para o local, não se colocavam na entrada do túnel para impedir a violação. Punham-se na saída para cobrar "pedágio" dos transgressores. Rapazes ricos, a quem não falta o dinheiro do papai, que mal tem extrair-lhes alguns "trocados" se não prejudica ninguém?

Apostando na impunidade, jovens bem aquinhoados vão fazer "racha" no túnel interditado. Não havia ninguém, os PMs eram "compreensivos", por que não? Que hora e lugar melhores, se não nada passava, nem gente, nem carros etc. etc. etc. Que mal tem se não prejudica ninguém?

Acontece o atropelamento, mas ainda não é tragédia porque o "alguém" atropelado ainda não foi identificado. Ele ainda é "ninguém". E sendo "ninguém", o pai do atropelador sente-se autorizado a negociar com os PMs a impunidade do filho. E a teria comprado se, de repente, não viesse a notícia de que o "ninguém" era "alguém", filho de Cissa Guimarães e de Raul Mascarenhas, dois nomes de expressão do mundo artístico.

A Nação entrou em choque. As pessoas indignaram-se, bradaram por justiça, mais uma vez quiseram a pena de morte, a prisão perpétua, o linchamento, esquecendo que, lá atrás, sobraram de episódios semelhantes os despojos do mendigo andrajoso, do índio embriagado, da "baixa" prostituta, do biscateiro sem-teto, de trabalhadores humildes nas paradas de ônibus, enfim, da fauna do mundo-ninguém, este mundo sem rosto por onde a tragédia passa antes de chegar a "alguém".

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