O comentário de Elio Gaspary, ontem, na Folha de São Paulo, sobre o rumo das telecomunicações no Brasil, faz lembrar "Deus lhe pague", de Joracy Camargo, sucesso de palco na década de 1930. Simplificando, o enredo contava a história de um falso mendigo, enriquecido com esmolas extorquidas à hipocrisia da sociedade.
Se a privatização livrou o Brasil do seqüestro de que fora vítima pelas gangues apossadas das antigas estatais, a incompetência e a corrupção de governantes – é difícil estabelecer a fronteira entre uma e outra, tão íntimas que são – entregou o país a uma nova malta de saqueadores, apenas mais espertos, porém não menos vorazes: cobram o resgate como o falso mendigo da peça, tostão por tostão.
É só fazer um cálculo rápido. Tomando-se apenas a metade arredondada da média entre o 1,07 e 0,07, preços máximo e mínimo cobrados pelas operadoras de celular, multiplicando-se os 25 centavos resultantes pelos 152.364.986 linhas móveis hoje ativas no país, segundo números da Anatel, chega-se ao assombroso faturamento conjunto de mais de R$ 38 milhões em cada minuto de uso desses aparelhos. Se fizermos modesto exercício de imaginação, supondo que essa rede imensa seja utilizada apenas 100 minutos em cada 24 horas, o faturamento diário totaliza quase 4 bilhões de reais. Faturamento diário, repita-se.
Não estão computados aí os serviços de banda larga, verdadeiros cágados se comparados aos dos Estados Unidos, Europa e Ásia, mas com toda certeza vendidos a preço das Ferraris da Fórmula 1. Na montanha de dinheiro reside a explicação para a despreocupação das operadoras em relação às multas supostamente milionárias que lhes são aplicadas pela Anatel.
Tudo nisso vem a propósito do estrilo de Otávio Marques de Azevedo, presidente do Grupo Andrade Gutierrez, referido por Gaspary em sua coluna, sobre a intenção do Governo de criar o provimento estatal de banda larga, para levar a Internet a todo o país e suprir a ausência do serviço em regiões cujos habitantes não têm renda suficiente, considerando-se os preços cobrados, para arcar com o "luxo" de se conectar com o presente.
O Grupo Andrade Gutierrez, associado ao Grupo Lafonte, de Carlos Jereissati da Oi, adonou-se recentemente da Brasil da Telecom. O episódio gerou falatório nos jornais, mas não teve consequências porque este é o país da impunidade ampla, geral, irrestrita e sacramentada. Contudo, um de seus executivos não vê inconveniente em qualificar a iniciativa do Governo de retrocesso e exigir a indissolubilidade do casamento com os novos "mendigos", já que o país em 1998 renunciou ao modelo de estatização. É como se nos dissessem que perdemos o direito de escolher o "mendigo" a quem dar a "esmola". Ou, melhor dito, de desalojar os "mendigos" que se adonaram dos "pontos", estabelecendo novo monopólio nas portas das igrejas.
Em um ponto, indiretamente, Azevedo da Andrade Gutierrez tem razão: o Governo não teria necessidade de estatizar nada caso se dispusesse a exigir das operadoras de telefonia que cumprissem o papel que lhe foi atribuído quando se adjudicaram às respectivas concessões. Mas como exigir-lhes algo mais que multas rituais, se o próprio Governo tornou-se cúmplice da batota, mudando a legislação para permitir o esbulho da Brasil Telecom, enquanto o filho do presidente da República fazia excelente negócio com um dos interessados? Falta-lhe moral para exercer a autoridade.