Alguém me pergunta se o jornalismo de hoje é melhor ou pior do que quando comecei na profissão. A resposta é muito simples: como o mundo e as pessoas mudaram, o jornalismo de hoje não é nem melhor nem pior – apenas conta coisas diferentes. Entretanto, se compararmos a cobertura policial que se fazia no final da década de 1950, início dos anos 1960, afirmo com toda a convicção que prefiro a de hoje.
Naquela época, a prática comum ao jornalismo policial era inventar a "inimigos públicos". Quando o personagem era fictício, como o "Monstro Negro", que atacava mulheres no Parque Farroupilha em Porto Alegre, não houve conseqüências maiores: as beatas das igrejas da avenida José Bonifácio redobraram as preces para preservar sua virtude e a freqüência das menos devotas aumentou no Parque. Em vão: o monstro não existia.
Rubem Braga faz uma caricatura magistral daquele noticiário em uma crônica sobre o assassinato de misterioso alemão em determinado número da Rua do Catete. Nem mesmo quem lhe alugava a casa conhecia sua identidade. Na sucessão de manchetes, o misterioso alemão sofre notáveis metamorfoses, desde criminoso de guerra acoitado no Brasil a ser uma mulher disfarçada de homem. A crônica terminava com a revelação bombástica: não existia aquele número na Rua do Catate.
Este tipo de jornalismo substituiu os folhetins publicados pelos jornais no pé da primeira página. Como as novelas da tevê hoje em relação à audiência, tinha por objetivo prender leitores. Foi deixado de lado quando a ética se tornou descartável. Quem, naquele tempo, inventou "Cléo atira para matar" em Porto Alegre, foi autor de crime maior do que todos os cometidos pelo personagem.
Cléo tinha 18 anos quando tudo aconteceu. Menino de origem modesta, copeiro-auxiliar em uma confeitaria chique no centro da cidade, impressionou-se com o relato das façanhas sexuais dos rapazes ricos em seus carrões envenenados. Na tentativa de imitá-los, furtou um automóvel, foi preso, fugiu, e foragido praticou uma serie de assaltos a mão armada, sem que a polícia conseguisse prendê-lo.
Foi o bastante para colocá-lo nas manchetes e a incutir nos policiais ser questão de honra prendê-lo, vivo ou morto. A trajetória de Cléo seguiu neste rumo até o dia em que aconteceu o inevitável: matou o proprietário de uma farmácia na grande Porto Alegre, que reagiu ao assalto. A vítima era também oficial da Polícia Militar do Rio Grande do Sul.
Por aqueles dias, fazia grande sucesso nos cinemas da cidade o filme de caubóis "Django atira para matar". A manchete da página policial foi: "Cléo atira para matar".
Cléo incorporou o personagem. Quando a Polícia o cercou, resolveu cinematograficamente reagir, entrincheirado em um... colchão. Se chegou a disparar tiros, foram muito poucos. Seu cadáver virou uma peneira no fuzilamento.
Felizmente, casos assim são águas passadas. Os cursos de jornalismo aprofundaram os conceitos éticos das novas gerações. Pena que, em má hora, o Supremo Tribunal Federal decidiu retroagir no tempo e cassou a exigência do diploma universitário para o exercício da profissão. Ao fazê-lo, os ministros do SFT tornaram-se autores de manchetes como aquela.