A Editora Record comprou os direitos de tradução e publicação no Brasil de obras inéditas de Umberto Eco, celebrizado pelo sucesso de "O nome da rosa". O primeiro lançamento, em 2011 (na Itália, já sai mês que vem) é "O Cemitério de Praga", história de conspirações e assassinatos vivida por espiões e políticos, tendo o velho Cemitério Judaico da capital tcheca como cenário principal.
Não é a primeira vez que este Cemitério serve de cenário a histórias macabras. É o mais antigo das necrópoles judias da Europa. Os nazistas não o destruíram porque pretendiam transformá-lo, com a Sinagoga, em "museu de uma raça extinta".
Certamente, os mentores da maluquice tinham em mente o capítulo de um romance do Século 19, "Biarritz", de "Sir John Retcliffe". Intitulado "No Cemitério Judaico de Praga", relatava a fictícia reunião de treze rabinos, conspirando para dominar o mundo.
"Sir John Retcliffe" era pseudônimo do falsário Hermann Goedsche, demitido dos serviços postais da Prússia por fabricar um "dossiê" (já naquela época!) contra o socialdemocrata Benedic Waldeck. Tido como agente secreto da polícia prussiana, Goedsche engajou-se a fundo no antissemitismo fomentado pelo chanceler Bismarck nos embates políticos de 1848. Produziu farta propaganda antijudaica. O capítulo referido de "Biarritz" mais tarde inspirou o serviço secreto russo, ao tempo dos tzares, a forjar outro "dossiê", "Os Protocolos dos Sábios do Sião", em que os nazistas acreditavam com toda a convicção, como se fossem dogmas.
Não está fora de propósito, portanto, supor que o zelo nazista pelo Cemitério Judaico de Praga tivesse a ver com esta origem de sua bíblia antissemítica. Não é o caso de Umberto Eco, cuja fixação pela capital tcheca tem outra origem – a brutal repressão soviética de 1968, que testemunhou e à qual alude no início de "O nome da rosa".
Eco já tinha sido publicado no Brasil pela Perspectiva, antes de seu best-seller torná-lo conhecido. Era texto de pequeno interesse fora do meio universitário. Esquematizava a estruturação e redação de trabalhos acadêmicos. Quando "O nome da rosa" estourou em 1980, alguns zoilos andaram resmungando que se tratava do livro mais citado e menos lido depois da Bíblia.
Se a referência à repressão soviética teve alguma coisa a ver com isso, é difícil de saber, mas também não está fora de propósito pensar-se no vínculo. A Primavera de Praga, como ficou conhecido o episódio da liberação do comunismo tcheco e seu esmagamento pelas tropas soviéticas, está entre os fatos mais contundentes, mas é o menos citado da história dos anos 1960.
Aconteceu tanta coisa naquela década: Vietname, Woodstock, Maio em Paris, feminismo, assassinato de Martin Luther King, só para citar alguns dos acontecimentos daqueles tempos de decisiva e transformadora rebelião, relembrados até hoje nos meios de comunicação e também fartamente documentados em livros. Toda a ênfase, porém, é posta no idealismo de Chê Guevara, também assassinado em 1968, cuja imagem continua estampando camisetas nas manifestações de rua. Sobre os mortos da Primavera de Praga, a discrição tange o limite, ultrapassado o qual caímos no silêncio sideral.
Guevara foi a teoria de um idealismo, cuja prática é a Primavera de Praga. Entre os dois, a teoria e a prática, a frase que os tchecos escreveram nos muros de sua capital, perguntando aos soldados soviéticos que os massacravam: "Vocês não eram nossos amigos?"
Se não for o epitáfio de uma utopia é o ícone de certas ingenuidades
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