Nota: Talvez já não haja mais quem estranhe o comportamento desbragado dos nossos políticos. Entretanto, aos que acham ser coisa dos "tempos de hoje", eis como o príncipe D. Pedro conheceu Francisco Gomes da Silva, malandro de botequim que atendia pelo apelido de "Chalaça". O episódio é narrado pelo escritor ASssis Cintra em "Nos degraus do Trono", do qual extraiu-se o capítulo ora transcrito.
Pedro I fez de Chalaça amigo do peito, conselheiro dileto, "ghost writer|" e figura de influência nos destinos da Nação. Quando o ex-malandro de botequim morreu, em 1852, deixou aos filho fortuna calculada em 1,250 milhões de mil-réis fortes, valendo algumas centenas de milhões de reais de hoje.
Em 1820 havia na rua da Viola (depois Teófilo Ottoni), uma casa de hospedagem de Maria Pulquéria, cognominada – "Maricota Corneta", porque dava o sinal das refeições com uma corneta que pertencera ao seu defunto marido, corneteiro do antigo corpo de infantaria da Corte.
Depois das ave-marias, ali se encontrava o que havia de melhor, na pândega e na valentia, o Rio de Janeiro desse tempo. De vez em quando a polícia do intendente João José da cunha dava uma batida na espelunca e levava para o calabouço meia dúzia de desordeiros.
Às vezes era a polícia que fugia, deixando na dobrada das esquinas alguns mortos e feridos. Tão famosa era essa hospedaria que, um dia, o príncipe D. Pedro resolveu conhecê-la de perto. Disfarçado com uma grande capa paulista, acompanhado de um valente e robusto camareiro, foi, à noite, visitar a "Hospedaria da Corneta".
Entrou. Discutia-se política e marafonices. Já se percebe que o vocabulário e as frases eram bocagianas, capazes de fazer corar o mais resistente frade de pedra. Chalaça trocava versos, dedilhando sua viola, com um pretalhão de olhos esbugalhados, ex-escravo do Paço, alforriado por ter salvo a vida de Carlota Joaquina, num acidente de cavalo. Chamava-se ele José Januário.
Aboletado numa das mesas de madeira rústica, D. Pedro assistiu à disputa dos dois turunas. De repente, José Januário, encarando o pseudo paulista, abriu a boca num sorriso alvar e cantou:
Paulista é pássaro bisnau,
Sem fé, nem coração:
É gente que se leva à pau,
A sopapo ou pescoção.
Toda a assistência olhou para o homem do capote paulista e riu numa estrondosa gargalhada. D. Pedro, rubro e nervoso, levantou-se. Afastando colérico a ponta do seu grande capote, com que ocultara a face ao entrar na espelunca, gritou ao companheiro, dando-se a conhecer:
- Meta o pau nessa canalha...
O negralhão branqueou ao reconhecer o príncipe e... fugiu na mais desabalada das carreiras. Os valentes sumiram, com exceção de um: "O Chalaça". Para ele investiu o companheiro do príncipe, de cacete erguido. Esperto como uma raposa, Chiquinho Chalaça evitou o golpe e com uma rasteira, pôs o agressor no chão, de pernas para o ar. Tomou-lhe o pau e, segurando-o pelo casaco, atirou-o por uma porta, para o quintal da hospedaria.
Maricota Corneta escondeu-se debaixo da mesa. Defrontaram-se apenas dois homens: o Chalaça e o príncipe. Este último tremia de furor. Então, calmo e sereno, o barbeiro tirou o largo chapéu catalão que usava, e, numa reverência de gentil-homem e um sorriso nos cantos dos lábios, murmurou:
"Francisco Gomes da Silva apresenta a Vossa Alteza os seus respeitos e os seus serviços".
D. Pedro não se conteve. Estrondou numa formidável gargalhada, dessas que só os portugueses sabem dar depois de um bom vinho de Trás-os-Montes e de uma bacalhoada minhota. Em seguida, alegre e aceitoso:
- Chalaça, tu és um homem...
"Permita Vossa Alteza que eu lhe conte o prognóstico de minha tia: chamava-me ela sr. comendador."
D. Pedro, de braços abertos, caminhou para o Chalaça e, apertando-o num grande amplexo, exclamou:
- Muito bem, comendador Chalaça...
Depois disso, D. Pedro fizera dele um amigo do peito e companheiro de aventuras amorosas.