segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Da ignorância à safadeza – Jayme Copstein

Conversava-se domingo à tarde em uma roda de café, onde havia médicos que receitam e pacientes que tomam os medicamentos receitados, com a particularidade de que entre os pacientes nenhum o era de qualquer dos médicos presentes. Apenas amigos. Ou amigos de amigos em encontro ocasional, quando sem nada para fazer, as pessoas conseguem viver em paz.

Ao contrário do habitual, porém, mesmo porque não havia nenhum chato na roda, a conversa não recaiu sobre doenças, mas não se pôde fugir dos remédios. Nada, sobre o que é bom pra isso ou melhor pra aquilo. Ambos, médicos e pacientes, ao menos os daquela roda, tinham em comum queixas contra a indústria farmacêutica, que se destaca, nos últimos anos, por um triste papel em todos os países do mundo.

Houve referências ao best-seller "O jardineiro fiel" e à indignação provocada pelo livro de John Le Carré, denunciando os grandes laboratórios farmacêuticos internacionais pela experimentação de novas drogas em cobaias humanas nos países pobres da África. A prática, ao que se sabe, continua, ampliada para América Latina, Europa Oriental, Ásia, mediante o recrutamento de doentes desesperados pela dolorosa combinação de doença com falta de dinheiro.

Mas do que ambos, médicos e pacientes daquela roda falavam, era de remédios que desaparecem das prateleiras das farmácias. Quando voltam , têm outro nome e preço consideravelmente aumentado.

Profissional que trabalhou em pesquisa de moléculas medicamentosas na indústria farmacêutica dos Estados Unidos, certa vez me explicou que é subterfúgio dos grandes laboratórios para fraudar a caducidade de suas patentes. Acrescentam à formula uma molécula absolutamente inócua, batizam a "nova" droga com outro nome e descartam a "antiga" através de uma campanha publicitária sutil, incluindo notícias "científicas" que os jornais, sequiosos por novidades, publicam sem desconfiar do papel de instrumentos a que são reduzidos.

Resulta que médicos, com frequência, têm de refazer suas receitas porque os pacientes não encontram o medicamento prescrito – não é mais "fabricado" – e os pacientes são tungados, pagando verdadeiro resgate para ter acesso ao "novo".

Algumas vezes, porém, sucede o contrário, quando alguma patente ainda está em vigor e uma descoberta realmente valiosa a tira do mercado. Aconteceu no início da década de 1980, quando Robin Warren e Barry Marshall conseguiram provar o papel da bactéria Helicobacter pylori na origem das temíveis úlceras de estômago, que com facilidade evoluía para tumores malignos. A história da sabotagem de que foram vítimas por parte da indústria farmacêutica foi contada pelo jornal Th New York Times em 2005, quando ganharam o Nobel de Fisiologia por sua descoberta. .

A resistência da indústria farmacêutica em aceitar a descoberta válida, devia-se ao faturando dos bilhões de dólares auferidos com substâncias como a cimetidina, o conhecido Tagamet dos ulcerosos daquele tempo. A tese de Warren e Marshall foi tachada de ridícula, sob o argumento aparentemente racional de que o corrosivo ácido gástrico digeria também os germes que acaso se arriscassem a penetrar o estômago.

É a mesma linha de raciocínio que levou cientistas à fogueira na Idade Média. Se a Terra era redonda, como os rios não se entornavam em cima das pessoas? A diferença é que, naquela época, a ignorância ditava o fanatismo.
No caso do Helicobacter pylori, a ganância impôs a safadeza.