Se houvesse um cataclismo, um fenômeno cósmico qualquer que exterminasse de um só golpe as abelhas e os homens, mas preservasse, por qualquer milagre, os ovos e os embriões; e, depois de um milhão de anos, também por um milagre, fossem criadas as condições para que esses ovos e esses embriões germinassem e evoluíssem até indivíduos adultos, no mesmo momento as abelhas reconstituiriam as colmeias e retomariam a vida, como se nada tivesse acontecido, porque sua herança é meramente genética.
Os homens, não. Para reconstruir a civilização, o milagre teria de incluir o livro, o escrínio onde ele guarda o conhecimento adquirido ao longo dos milênios, porque a sua herança é cultural. Este pensamento me veio à cabeça nos feriadões de fim de ano, passados na praia, sem jornal, rádio, tevê e internet. Tinha comigo, de propósito, porque ando nauseado da mesmice que nos servem diariamente, apenas alguns exemplares do "Almanak Litterario e Estatistico da Província do Rio Grande do Sul", de Alfredo Ferreira Rodrigues, e o "Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul", de Graziano A. de Azambuja, editados entre o fim do século 19 e o início do século 20.
Tenho uma coleção incompleta das duas publicações, catada ao longo de decênios por meu irmão, o historiador Raphael Copstein, que foi buscá-las nos sebos e onde mais pudessem estar disponíveis, seja porque seus possuidores as tinham em duplicata seja porque não lhes votavam maior interesse.
Pois folheando os velhos volumes, vejo que Virgilio Pinto adquiriu o "Almanak" no próprio ano do lançamento – 1889 – e sublinhou, na página 95, em artigo de Albino Moreira de Souza, "O indiferentismo", escrito no Recife, Pernambuco, em 24 de março de 1888, a frase: "Não! O irracional pode ver, ouvir e assistir com indiferença a todas as manifestações do espírito humano; o homem não, ainda que o queira."
O artigo e a anotação me trouxeram à lembrança algo que li de Clarence Day: "O mundo dos livros é a criação mais notável do homem. Nenhuma outra coisa que ele constrói dura para sempre. Os monumentos caem; as nações perecem; as civilizações envelhecem e morrem; e, depois de uma era de obscuridade, novas raças constroem outras. Mas no mundo dos livros existem obras que viram isso acontecer inúmeras vezes e ainda vivem sempre jovens, sempre novas como no dia em que foram escritas, sempre contando ao coração dos homens o que existia no coração de homens que morreram há séculos".
Não consegui identificar Virgílio Pinto nem Albino Moreira de Souza, mas pude saber o que pensavam há mais de 120 anos. Clartence Day me induz a acrescentar que, quando leio um livro, é como se tivesse me adonado do tempo e pudesse manejá-lo a meu bel-prazer. Se é livro é antigo, estarei participando dos acontecimentos e convivendo com alguém que viveu em passado remoto, inatingível sob qualquer outra forma. Se é atual, quem me dirá que não estará falando um dia a outro homem e em outro cenário de um futuro remoto, que jamais estaria a meu alcance por qualquer outro modo, se não fosse pelo testemunho da única voz que falará por mim e por meus contemporâneos naquele tempo – o livro?