Zero Hora de domingo destaca a história de um casal de porto-alegrenses: Mauro Silva da Silveira e Catiana Maciel Gonçalves.
Não se precipitem. Não são ladrões de banco nem assaltantes de rua. Menos ainda mensalistas iracundos que fizeram opção pela pobreza (dos outros!) – mas se cevam em dinheiros escusos e acusam, mas não combatem, a gatunagem de terceiros. Até a aceitam em acordo repulsivos porque, como sabeis, uma ladroeira justifica a outra.
Mauro Silva da Silveira e Catiana Maciel Gonçalves, duas pessoas humildes, são exemplo de trabalho, honestidade e perseverança. Ele aprendeu a profissão de motorista, porque era a que estava ao alcance dos trocados que poupava como entregador de jornais. Com isso, progrediu na vida: agora, com muito orgulho, é taxista.
Ela, a Catiana, o jornal não diz. É uma pena. Presumivel dona de casa, discute cada vintém do preço quando compra na quitanda da esquina, para que o casal possa viver com decência, sem dever dinheiro ou favores a quem quer que seja.
Durante seis anos, 2190 longos dias – querem o cálculo em horas? – durante 52560 horas, Mauro e Catiana juntaram toda a moeda pequena que lhes caísse nas mãos – vintém por vintém – até completar o preço de uma tevê de 29 polegadas. Quanta roupa nova, quanto churrasco de domingo, quanto passeio ficou pra trás, é fácil de imaginar. Com o dinheiro na mão, comprando a vista, ainda obtiveram 100 reais de abatimento no preço.
A mesma edição dominical de Zero Hora destaca a história de Sonáli Zluhan. Filha de funcionários federais aposentados, estudou em escola de elite, o Colégio de Aplicação da UFRGS, formou-se em Direito, também pela UFRGS, casou-se e divorciou-se duas vezes, ingressou na magistratura do Rio Grande do Sul e hoje é a juíza da 3ª Vara Criminal de Caxias do Sul.
Sonáli Zluhan gosta de trajar jeans que já saem da fábrica com artísticos rasgões. Deixou de usar “piercing” porque irritava a pele. Tem seis tatuagens pelo corpo, das quais só foi mostrada a que fica atrás da orelha direita. A legenda de Zero Hora diz que é chinês e traduz: “Ama mais o próximo do que a ti mesmo. Contempla e respeita a natureza. Esse é o caminho do mundo”.
Parece pouca tatuagem para tanta norma de vida. Algo assim tão comprido, a exemplo das novelas, deve continuar pelas cinco tatuagens restantes. Mas não foram mostradas, só a da orelha direita.
A reportagem também não esclarece se a carreira da juíza Sonáli Zluhan, a exemplo do taxista Mauro Silva da Silveira, foi financiada com o suor do seu próprio rosto, como preceitua o nosso prosaico Gênesis, que apesar de turrão, não divide a sociedade em castas intransponíveis.
Nem era esse o motivo da reportagem. A juíza Sonáli Zluhan veio para as páginas de Zero Hora porque, como todos nós, está indignada com a omissão das autoridades na questão dos presídios, masmorras medievais sem que o Judiciário, em algum tempo, proteste e exija solução com a mesma veemência com que alguns de seus integrantes reivindicam questões do interesse da classe.
A juíza Sonáli Zluhan materializa sua desconformidade libertando criminosos de periculosidade reconhecida, como o Doca, condenado por roubo e extorsão e em liberdade condicional, flagrado ao entrar no Presídio com drogas. Solto alguns dias depois, participou de latrocínio em que foi morto o irmão do bispo de Caxias do Sul.
A magistrada defende sua liberalidade, argumentando que ninguém viu, ainda, um criminoso de colarinho branco cumprindo pena. Ao que tudo indica, a mesma legislação que permite a liberação de latrocidas é que mantém fora dos cárceres os grandes gatunos do país. E também, aqui, falta a veemência que todos desejaríamos do Judiciário contra essas leis.
A juíza Sonáli Zluhan lamenta a morte do irmão do bispo de Caxias, mas se justifica, dizendo que não como prever que o detento por roubo e porte de drogas se transformaria em assassino.
A gente fica pensando. A magistrada não tem como adivinhar, também, que um dos criminosos que ela libera possa um dia cruzar o caminho de Mauro Silva da Silveira e Catiana Maciel Gonçalves, o casal de porto-alegrenses que gastou seis anos da sua vida, poupando vintém por vintém, para comprar um televisor.
Já imaginaram, o casal ajoelhado, depois, vendo os gatunos levarem o amado televisor, dando a graças a Deus que lhes restou a vida, essa vida pobre, espoliada, sofrida, esmagada pela ganância, não só dos grandes gatunos, mas também de uma elite que se ceva em privilégios de todo o tipo?
Será que, de sã consciência, poderíamos chamar isso de Justiça?
segunda-feira, 12 de junho de 2006
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