sexta-feira, 14 de julho de 2006

Os navios submersos - Jayme Copstein

Meu irmão Raphael, professor universitário aposentado e interessante mistura de poeta tímido e filósofo perplexo, cunhou uma frase da qual nunca me esqueci: a gente passa um dia na vida da escola, a escola fica na vida da gente para o resto dos nossos dias.
Lembro-me bem do dia, em março de 1937, quando fomos, ele, eu e o primo Bernard, para o Lemos Júnior. Jaime – com “i”, o primo mais velho, era aluno antigo
O outono já estava nas ruas com seus antigos aromas de flores murchas e frutos passados. Sobravam alguns calores de verão. É possível que uma ou outra cigarra vadia ainda recalcitrasse em seu berimbau, antes de bater à porta dos formigueiros.
Mas se ainda havia cigarras, a meninada não pôde notar. O outono é quase sempre uma estação silenciosa na velha cidade e os primeiros ventos que prenunciam o inverno chegam calados e sisudos como velhos senhores que têm a grave missão de preparar um cortejo.
Naquele março, entretanto, os ventos traziam estranhos ruídos, de percussão em metal, um tanto abafados, sugerindo artesãos fantasmas, esculpindo sinos do casco de navios submersos.
A imagem não estava fora de propósito. O prédio do Lemos Júnior – agora Colégio Estadual – olha de frente, com sua porta alta e as muitas janelas, para o terrapleno oeste, junto ao Saco da Mangueira, hoje saneado, urbanizado e habitado.
Mas naquele tempo, a cidade terminava 100 metros adiante, na rua Barão de Cotegipe, limitada por um casario amarelo que secava em meio a umas tantas chácaras. Dali para frente, era puro banhadal, com greda fétida, escorregadia como sabão, atolando as vacas transviadas dos tambos das proximidades.
Por todo o inverno, a meninada continuou escutando os sinos dos navios submersos, imaginando fantasmas de corsários forjando sabres para atacar nos sete mares.
Eram as dragas, saneando o pantanal, para ser urbanizado e habitado, como é hoje. Mas sem atinar com o que fosse, acrescentávamos o nosso próprio alarido, cadenciado pelo grito dos inspetores de disiciplina, como se fosse o breque de um samba: “Meninos!”
Não adivinhávamos que, naquele momento, a realidade copiava parte da fantasia. Era de fato uma forja, na qual se modelava a vida e se traçavam os rumos de muitas gerações.
O “velho” Lemos Júnior completa hoje 100 anos.
Vêm-me à mente a frase do meu irmão Raphael: a gente passa um dia na vida da escola, a escola fica na vida da gente para o resto dos nossos dias.
As lembranças deste primeiro dia são a homenagem da família Copstein à oficina de saber onde ela forjou o seu destino.

Nenhum comentário:

Postar um comentário