sábado, 14 de março de 2009

Ficções brasileiras - Jayme Copstein

A nação se mostra perplexa diante do assalto aos dinheiros públicos, perpetrado por funcionários do Senado, abiscoitando horas extras em período de férias.

Que novidade há nesse golpe, tão velho quanto o conto do vigário? Já houve tempo em que bastava passar cinco minutos em cargo de confiança para incorporar a gratificação da função.

Se alguém cavoucar a fundo as espertezas registradas pela história do país vai encontrar em regulamentos portuários dos anos 50 do século passado, a proibição de admitir novos estivadores antes que os turnos de trabalho somassem mil horas mensais.

A alguém com todos os parafusos no lugar, bastaria multiplicar 30 ou 31 dias por 24 horas para saber que um mês, no máximo, pode ter 720 horas ou 744 horas. Neste país palavroso pela própria natureza, que importa a aritmética, se a gente sempre tem “jeito” para tudo? Inventou-se o “tempo ficto”, tempo fictício, que não é medido pelo relógio, mas só existe para calcular vantagens.

Para “dar jeito” na proibição foi criada outra categoria fictícia, a dos “bagrinhos”, substitutos dos estivadores titulares, chamados para preencher eventuais faltas ou quando o aumento da carga e descarga dos portos exigia mais mão de obra. Na continuação, os titulares criaram um feudo. Não trabalhavam – ninguém lhes cobrava as faltas – e alugavam sua vaga aos bagrinhos.

O regulamento foi revogado ao tempo de Castello Branco, mas o conceito de tempo ficto restou pendurado nos costumes e foi estendido à previdência social, para ser contado como tempo de contribuição sem haver contribuição.

Funcionários burocráticos das empresas de mineração conseguiram, apesar das delícias do ar condicionado de seus escritórios, o mesmo adicional de insalubridade e a mesma contagem de tempo “ficto” dos mineiros que empedram os pulmões debaixo da terra. Um contínuo, tendo ingressado na mineradora com 15 anos de idade, aos 30 se aposentou, com 35 anos de “trabalho”. Ou seja; já estava “trabalhando antes mesmo que as gônadas de seu pai tivessem fabricado o espermatozóide que o gerou.

Não há, pois, razão para tanta alaúza por que funcionários do Senado gadunharam horas extras – tempo ficto, minha gente, como diria Collor de Mello, brasileiras e brasileiros, como diria Zé Sarney, povos e “povas” como só falta alguém dizer.

Há uma historinha antiga, parecida, envolvendo os compositores Benedito Lacerda e Humberto Porto, quando emplacaram a marcha “A jardineira” como o maior sucesso do Carnaval de 1939.

Era plágio descarado da canção que, em 1906, Candinho das Laranjeiras fizera para seu bloco Flor ou Filhos da Primavera e que todo mundo conhecia. Foi um escândalo. Confrontado com o plágio, Benedito Lacerda cunhou a frase lapidar:

“Se a gente soubesse que ia dar tanto rolo, a gente não tinha feito.”
Já contei esta história, mas vale repeti-la porque, tão logo estourou o fuzuê das horas extras do Senado, pra lá de fictas, o novo secretário da Casa, Heráclito Fortes (DEM-PI) apelou aos jornalistas: "Parem com isso. A coisa vai chegar aonde?"

À cadeia, lugar pr’a lá de certo, com toda a certeza não, porque, graças ao próprio Congresso, este é o país da impunidade.

Por sua vez, o erudito e impoluto Zé Sarney, presidente do Senado, desconversou, fazendo pequeno discurso sobre responsabilidades e falando na devolução do dinheiro. Só falando, mas não exigindo.

Em outras palavras, Fortes e Sarney repetem Benedito Lacerda: “Se a gente soubesse que ia dar tanto rolo, a gente não tinha feito.”

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