Quando fui para o Correio do Povo, em abril de 1968, coube-me a mesa confronte a de Mário Quintana. A coincidência marcou o início de longos papos descompromissados, logo transformados em amizade. Muito anos depois, quando ele fez o testamento em favor da sobrinha Helena, Antônio Carlos Ribeiro e eu fomos as testemunhas. Mário desejava manter a privacidade da decisão e nos escolheu como amigos de confiança.
As confidências trocadas naquela redação, onde muitas vezes, em domingos e feriados, éramos os dois únicos habitantes do planeta, foram muitas, inclusive sobre o período em que teve problemas de alcoolismo. Contava que na Clínica Pinel lhe haviam detectado pequena deficiência de condução elétrica no cérebro, cujos sintomas a embriaguez aliviava. Substituída a bebida por um medicamento adequado, nunca mais pôs álcool na boca.
Aí paravam as confidências sobre o alcoolismo. Havia algo, entretanto, de que ele não falava. Segundo depoimento de outras pessoas, seu comportamento, quando embriagado, era nitidamente autopunitivo. Abordava os freqüentadores dos bares com grosserias, para lhes esgotar a paciência e ser por eles agredido.
Mais lacônicas, ainda, eram suas referências ao pai que, alarmado com as “poetices”, dele quisera fazer “um homem”, mandando-o estudar no Colégio Militar. A caserna haveria de ensiná-lo.
Em vão. Eliminado do curso pelas sucessivas reprovações em matemática, Mário empregou-se na Livraria do Globo para estar perto dos livros e dos escritores. O pai o tirou lá porque não queria filho vagabundo, zé-ninguém. A relação entre os dois tornou-se crítica.
Mário tentou sepultar conflito no silêncio que reina sobre a figura paterna em sua poesia desta fase, se é que se pode chamar assim a que vai até o tratamento e a cura do alcoolismo. Mas há evidente sentimento de culpa nas grosserias, quando embriagado, em busca de punição.
O conflito começou a ser resolvido com o apoio psicológico recebido na Pinel. Logo em seguida, o início da reconciliação com a figura paterna aparece no poema “O Velho no Espelho”:
(...) Nosso olhar – duro – interroga:
O que fizeste de mim
Eu, Pai,
Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga. Que importa
Eu sou ainda
aquele mesmo menino teimoso de sempre
e os teus planos enfim lá se foram por terra
mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!- vi sorrir nesses cansados olhos
um orgulho triste.
A reconciliação torna-se definitiva, depois, em outro poema, As mãos de meu pai:
As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já cor da terra
- como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre cólera dos justos
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se chama simplesmente vida.
Mas então, Mário Quintana já libertara em si a figura doce, cuja lembrança é a que todos guardamos dele.
terça-feira, 30 de maio de 2006
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